“’Quando o anularmos, vamos estudar o seu cérebro’. Anularmos, pensa, outra palavra que silencia o espanto.”
Há muitas palavras higiênicas para amenizar verdades atrozes.
Pare alguns minutos e pense nos eufemismos que usamos para disfarçar o que realmente queremos dizer. E se precisar de ajuda, vou te dar alguns exemplos: desviver ao invés de morrer, hot ao invés de porn*grafia, antiquerido ao invés de “aquele babaca insuportável”.
Naturalizamos um discurso higienizado para reduzir o impacto da realidade e, cada vez mais, constrangemos e julgamos quem se recusa a participar do jogo.
Porém este hábito social não é usado apenas na esfera individual, pois a linguagem, sendo um instrumento político de dominação, é a ferramenta principal no que se diz respeito a controle populacional. Pense na nossa política recente, nas fake news, nas doutrinas religiosas, nos resultados da eleição na última semana. Assustador, não?
Colocando o capitalismo em jogo, a cena fica mais grotesca e Saboroso Cadáver conseguiu levar ao extremo um cenário que é asqueroso, mas nem um pouco absurdo.
É neste momento que entra a distopia capitalocena
Afinal, o conceito de Antropoceno “atribui à humanidade (antropos) status e magnitude de uma força geológica” (COLTRO; BORINELLI, 2020, p. 157).
E uma das suas mais difundidas interpretações críticas advém da tese do Capitaloceno, onde Andreas Malm e Alf Hornborg comentam que (2014, p. 62-69, apud COLTRO; BORINELLI, 2020, p. 158) as causas desse fenômeno não podem ser atribuídas à humanidade como um todo unificado; a distribuição dos responsáveis pela mudança climática e outras alterações na geomorfologia do planeta se concentra entre os mais abastados, ao passo que os menos favorecidos sofrem de forma mais drástica os seus efeitos.
Superpopulação, pobreza, preconceitos… Tudo isso resolvido com uma única chave: fazer humanos começarem a se alimentar de outros humanos.
O problema é convencer as pessoas que canibalismo é bom; canibalismo é o futuro. Não, melhor, vamos banir a palavra e nos armar de eufemismos. Comer “carne especial” é bom, “carne especial” é o futuro.
E então conhecemos o cerne de uma boa distopia
Etimologicamente, a palavra distopia é formada pelo prefixo dis (anormal, doente, mal funcionamento ou dificuldade) seguido de topos (lugar), podendo significar em um sentido literal como um lugar anormal ou deturpado. Porém, para o historiador Júlio Bentivoglio (2019, p. 95-96) “a distopia não é uma antiutopia, ela é um deslugar, que não se encontra exatamente no futuro, mas, que pode estar em qualquer lugar, inclusive no presente e no passado”.
Agustina Bazterrica nos pinta esse cenário em suas minúncias, com todas as suas hipocrisias e eufemismos.
É uma história sem grandes reviravoltas e emoções. Este livro não tem a intenção de te entreter.
Ele se arma do cerne da proposta do gênero distópico e lhe traz, em menos de 200 páginas, debates altamente comtemporâneos.
“Contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro” (AGAMBEN, 2009, p. 62).
E o que é este escuro, senão a ofuscação gerada pela luz emanada pela utopia de alguns, que sempre será a distopia de outros?
Saboroso Cadáver é um passeio no frigorifico, e você é o gado.