(Hurricane – 30 Seconds to Mars)
Estava escuro, não conseguia enxergar um palmo à frente do nariz, mas dava para ouvir o ambiente nas suas mais ínfimas nuances. Os ratos no assoalho ressonavam andando de um lado para o outro em busca de alimento; os insetos eram fartos pelas muitas chuvas da estação. Chuva esta que batia mansa na janela defeituosa, permitindo que uma nuvem de umidade entrasse e se impregnasse ao cômodo, revestindo as paredes com uma grande camada de mofo, que liberava seu forte cheio característico.
Se observassem o lugar com perita avaliação, teriam visto um reflexo vermelho paralelo à janela. Era fugaz, quase imperceptível no breu em que estava, mas o ar levemente condensado deixava com que poucas formas fossem definidas se bem observadas.
Chegando mais perto seria possível não só enxergar o brilho carmim tomar forma, mas também a pele alva emoldurando-o. Possuía traços fortes; um queixo anguloso, um nariz que lembrava as esculturas gregas e os lábios, ah, os lábios… Estes eram mortalmente chamativos.
Os olhos estavam fechados, mas possuíam profundas olheiras, indicando noites mal dormidas.
Seus ombros estavam retesados, os músculos rijos eram visíveis pela surrada camisa de linho. As pálpebras movimentavam-se, denunciando um a agitação do corpo supostamente imóvel. Ele estava agitado, estava começando a entrar em desespero. O gosto acre do sangue começava a desaparecer de seus lábios e de suas lembranças, as imagens estavam desfocadas pelo tempo e o vento, que por si só o faziam esquecer. As sensações pouco tinham da real intensidade.
Em contrapartida a tudo o que desaparecia outras sensações vinham substituí-las. Os lábios estavam secos e a sensação era de que algo comprimia seu âmago, o cheiro nauseabundo dava-lhe ânsias, mesmo que fossem apenas peças pregadas pela sua mente deturpada. Seu raciocínio estava rápido, mas desconexo. E, se tinha uma coisa que ele odiava sentir, era a falta de controle sobre suas ações.
Aqueles sintomas eram característicos, conhecia bem os motivos. Era a abstinência, a ausência do vício que lhe devolvia o pouco de controle que exercia sobre a besta adormecida dentro de si. Precisava da droga, precisava das alucinações e de lembranças frescas. Precisava matar.
O outono cobria Wintsford como um manto de folhas que esvoaçava pelas ruas como pele de serpente. O clima era úmido e quente. Chuvas intermináveis durante a noite, atmosferas agradáveis durante o dia. Ela gostava dos cheiros que esta época exalava, gostava do vento acariciando sua pele e do gosto da chuva. Mas, principalmente, gostava da liberdade que possuía quando o outono chegava.
O pai juntamente com o primo ausentavam-se nessa estação para cuidar das empresas filiais no outro extremo do país. Às vezes, devido as festividades, se prolongavam na ausência. A irmã mais nova era mandada para o colégio interno e só retornava no fim do ano, seis meses depois. Com isso, ficava sozinha em casa com apenas os empregados para lhe fazerem companhia. E isso era bom.
De certo que não reclamava dos cuidados que lhe eram direcionados, mas em excesso não agradavam. Não era inválida, nascera do jeito que nascera, frágil e não totalmente independente como a irmã, mas mesmo assim gostaria, de ao menos um pouco, ter a independência tão invejada.
O outono lhe proporcionava isso.
Sem pedir permissão a ninguém, pouco após o almoço, direcionava-se à biblioteca e, acariciando com os dedos a lombada do livro, escolhia o romance que mais lhe agradava. A Casa Vermelha. Seu volume preferido, por mais estranho que pudesse parecer, um pouco de ação e um romance perturbado.
A história por si só trazia-lhe novas sensações, sensações jamais permitidas para uma vida tão monótona como a que possuía. Sentada no banco a poucas quadras de casa, ela via a narrativa se estilhaçar em mil histórias, como se o relato penetrasse numa galeria de espelhos, e sua identidade produzisse dezenas de reflexos díspares e ao mesmo tempo um só.
Interrompia sua leitura quando o sol amainava-se sob sua pele, indicando o entardecer. Precisava apressar-se antes que algum criado viesse a sua procura. Fechava as páginas com tristeza no peito, pois sabia que agora era a hora de voltar a ser solitária.
Por mais que lhe desagradasse, seu corpo não clamava apenas pelo vício, precisava se alimentar também. Havia se tornado um hábito sair apenas com o entardecer, o sol era como um veneno e incomodava-lhe muita claridade. Tinha uma certa facilidade em enxergar no escuro, os traços das coisas lhe eram o suficiente.
Não gostava das pessoas, esquivava-se o máximo delas. Talvez este fosse o motivo para sempre cortar caminho pelo parque quase vazio àquela hora. O outono espalhava folhas como um carpete avermelhado e o vento faziam-lhes farfalhar. Ele gostava da visão, gostava do vermelho, gostava do cheiro de chuva constante, gostava da dor e do abandono que aquilo lhe fazia recordar. Gostava das lembranças.
Percorria toda a extensão com passos rápidos e pouco olhava em volta. Preferia encarar o chão e tentar formar imagens com as folhas mortas que estalavam sob seus pés.
Em suma, ninguém se aproximava. Por este horário as crianças já haviam se recolhido e os adultos voltavam para o aconchego de seus lares, e caso tivesse algum perdido por ali ainda, sua imagem era o suficiente para se afastarem, quase como que por instinto.
Ou talvez não.
Murmurou uma infinidade de impropérios ao sentir o encontrão e alguma coisa diminuta bater em seu peito. Levantou os olhos raivosos para encarar o atrevido, pronto para empurrá-lo com um movimento brusco e continuar seu caminho. O braço parou a meio caminho. Não era um rapaz, e sim uma mulher. Uma garota, melhor dizendo. Mas o que realmente o parou eram seus olhos, esfumaçados, quase brancos. Ela era cega.
A moça extremamente constrangida murmurava desculpas sem parar enquanto ajeitava-se e se apoiava melhor no guia, o livro que tinha em mãos caiu no chão num estralo e ela fez menção de se abaixar antes dele interrompê-la. Pegou o volume com cuidado, uma grossa capa vermelha e volumosas folhas. Não sabia dizer com exatidão, mas acreditava aquilo ser braile, a língua dos cegos.
Amaldiçoou-se pela sua falta de reação imediata, mas o vermelho que tingira toda a extensão do rosto e parte do pescoço o havia hipnotizado. Via a cor escarlate diminuir, deixando apenas um leve rubor nas bochechas enquanto lhe entregava o volume.
– O-obrigado. – Gaguejou enquanto pegava-o hesitante. A falta de precisão fez com que ambas as mãos se encontrassem e ela recuou, sorrindo constrangida.
O ruivo permitiu que um sorriso predador desenhasse-se em seus lábios. Ela tinha a voz de cristal, tão transparente e frágil que parecia que suas palavras se partiriam, se ele a interrompesse no meio da frase.
– Não seja por isso, senhorita. – Respondeu com a voz macia, pois quando queria, sabia ser a mais afável das pessoas. – Precisa de ajuda?
Ela levantou os olhos, mesmo sem ver, e maneou negativamente a cabeça. Colocando uma mecha do cabelo atrás da orelha, virou-se e se pôs a caminhar. Ele a impediu, segurando seu braço de leve. A pele era pálida e quase translúcida, o que o incitou a tocá-la com cuidado. Ela se virou numa indagação muda.
– Creio que estava indo para o outro lado senhorita…? – Deixou a questão em aberto, como que indagando-lhe o nome.
– Catherine, Catherine Montrian. – murmurou, sorrindo sem graça pelo erro cometido.
– Bom, prazer Catherine, sou Adrian Levenge. E insisto em acompanhá-la até sua casa.
Ela enrubesceu mais, voltando ao primeiro tom que lhe tingia quase todo o rosto. Sentia na voz dele uma pontada de sorriso e instintivamente soube que aquele homem era do tipo perigoso. Seu cheiro era marcante, apesar de não manterem uma grande proximidade, ela o sentia perfeitamente em suas nuances amadeiradas e assim ela conseguia ter uma ideia de como ele era fisicamente. Pois seu idioma eram as texturas e os ecos, a cor das vozes e o ritmo dos passos, não precisava ver para enxergar, ela apenas sabia.
Passou o braço em volta do dele e permitiu-o guiá-la após explicar-lhe o endereço da casa, a menos de uma quadra de onde estavam, virando a rua. Pouco conversavam, pareciam se sentir confortável com o silêncio.
Adrian estava em alerta, absolutamente ciente da garota a seu lado. Talvez não houvesse chegado a conclusão consciente de que a queria, mas seu subconsciente, o monstro que o dominava, já havia decidido isso. Sentia uma ponta de remorso perante o inevitável, ela parecia um anjo, e ele iria maculá-la com suas garras.
Não muito longe pôde distinguir o casarão imponente que ocupava quase um terço de toda a quadra. Era de boa família, um ótimo indicativo de que não seria fácil tê-la. Precisaria tirá-la de perto da casa, atraí-la para um lugar isolado.
Parou abrupto em frente ao portão de metal trabalhado, o sol se escondia sob as árvores, criando sombras no chão. Ele a olhou com aquela confiança que apenas os cientes de que não seriam pegos olhavam uma pessoa. Olhou-a bem a tempo de ver o vento, que não passava de uma suave brisa, acariciar-lhe os cabelos e a pele como o mais experiente dos amantes.
Esta mesma lufada de ar inflou suas narinas, impregnando-o até a alma do cheiro doce que ela tinha. Era aquele mesmo cheiro que o fazia perder a razão, era aquele cheiro que ele queria possuir. Em sua mente, o monstro enjaulado lutava para se libertar, jogando-se contra as grades da gaiola de forma insana e violenta. Adrian puxou o ar que vinha de outra direção com força, agarrando-se nas beiradas da sanidade para manter o controle.
Ainda não.
Catherine levantou os olhos para o desconhecido com o intuito de chamar-lhe a atenção. Haviam-se passado alguns minutos desde que haviam parado de andar, pela sua contagem provavelmente estavam quase em frente aos portões da casa e ele mantinha-se no mais absoluto silêncio.
Algo em seu intimo dizia que aquele rapaz não era exatamente confiável, talvez por ter pouco contato com pessoas estranhas, esse comichão se alastrasse em seus pensamentos. Mas talvez por este mesmo motivo é que a curiosidade conseguisse sobrepor-se a todo e qualquer receio.
Ele a soltou, os dedos acompanhando toda a extensão do braço desnudo e parando quando encontrou com seus dedos, os dela. Sorria minimamente para si, satisfeito por colocar-se sob controle.
– Chegamos, senhorita. – pronunciou, finalmente.
Ela sorriu, tímida, e recolheu a mão que ele segurava para apoiar no guia, suspenso até aquele momento. Pretendia afastar-se, mas se conteve pela curiosidade que sentiu. Como ele era? Mordeu o lábio inferior enquanto debatia sobre a questão, talvez fosse ousadia demais.
– Senhor…
– Adrian, apenas Adrian.
– Hum… Bom… Adrian… – Ela pronunciou devagar, brincando com as letras nos lábios. – Poderia…? – perguntou, levantando a mão para perto de seu rosto, deixando claro seu intento.
Ele segurou seu punho e Catherine abriu a boca para desculpar-se, mas antes que pudesse fazê-lo, o rapaz retirou o livro e a guia que mantinham a outra mão ocupada, liberando-a. Guiou-a até seu rosto, com as próprias mãos tremendo de leve, o coração batia no peito como se a alma quisesse abrir caminho e jogar-se pelas escadas. E, quando sentiu o toque aveludado de seus dedos contornando seus lábios, soube que estava perdido.
- Continua…
Vocês não tem noção da ansiedade em que eu me encontrava para finalmente colocar no ar a primeira parte desse meu conto. É um dos meus preferidos e eu tenho um carinho todo especial por ele. Por ser um conto de 25 páginas, eu dividi-o em três partes. Eis a primeira. As outras são relativamente menores, é que eu não podia cortar essas três cenas. Espero que tenham gostado, dependendo da animação de vocês para com a história eu posso demorar mais ou atualizar mais rápido.
Promoção, aqui!
Debbys
=OO
menina, tá muito bem escrito! eu tava lendo pensando que você iria fazer resenha de algum livro, mas percebi que estava grande demais pra ser só um trecho.!
Nossa, adorei!! Sério!!! Posta continuação looogo! =]]
HONORATO, Sandro
Jade 🙂
Excelente conto *-*
Ficou bem legal >.<
E mesmo sendo grande,você prende a atenção do leitor 🙂
Beijos e bom final de semana
http://www.rimasdopreto.com
Déborah-alana
Jade amei o conto, estou adorando amiga 🙂 escreve muito bem, anciosa para mais postagens :* beijos amiga
:: Loma
Hey Jade ^^
PORFAVOR continue… apelo de alguém que ama ler algo bem escrito e levado ao sentimento.
Xxx
:: Loma
Nana
Escreve sim, Jade!!!
Fernando
Olá Jade
Quando vi o enorme texto, pensei em passar direto.
Mas fiz questão de lê-lo completo, e gostei muito de seu conto. Gostei muito da forma como você descreve os cenários do conto, e pude deixar minha imaginação transcrever cada cena que você escreve aqui. Muito bom mesmo. Voltarei aqui para ver a continuação.
Grande abraço
Fernando dos Santos
FERNU OPINA – BLOG
Lu Rosário
Você escreve muito bem, sabe lidar com a riqueza de detalhes.
Vvou ficar esperando pela continuação.
Beijos!
Paloma Viricio:: Jornalismo na Alma::
Aii que show! Agora fiquei ansiosa para ler o resto^^! Adorei…Beijos!
http://palomaviricio.blogspot.com
Sammy
Jade, não sei nem o que dizer! Que demais, o modo com que vc descreve as cenas, os personagens, suas emoções, faz com que estivéssemos assistindo de perto a estória, como se estivéssemos ali na hora de cada fato. O encontro deles, o esbarrão, vi nitidamente em minha mente, essa última parte: "Guiou-a até seu rosto, com as próprias mãos tremendo de leve, o coração batia no peito como se a alma quisesse abrir caminho e jogar-se pelas escadas. E, quando sentiu o toque aveludado de seus dedos contornando seus lábios, soube que estava perdido." Eu simplesmente adorei, claro, toda essa primeira parte do conto é fantastica, vou ficar muito ansiosa pela próxima e saber o que acontece com Adrian e Catherine.
Bjs
daimaginacaoaescrita.blogspot.com
Nah Sodré
Super recomendo ;D Federico Moccia é tudo de bom *—* sobre seu post, vc escreve bem =D curti, parece uma fanfic.. que saber o que acontece com eles em breveee! quanto sentimento entre os dois… que deliiiiicia de ler *—*
Gleyce K
Que belo conto. Adorei a precisão de detalhes.
Curiosa para ver a continuação…
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Beijinhos!!!
; amanda cristine.
Eu adorei! Você escreve muito bem, sério. Mal posso esperar pra ler a próxima parte, sério. Ficou muito legal *-*
Beijos :*
the-mandie.blogspot.com
Camilla Martins - {http://sugar-dance.org}
Você escreve muito bem a continuação tende a ser ótima 😉
Tem post novo no meu blog, confere lá *-*
Bjonas e fique com Deus <3
Camilla Martins – http://sugar-dance.org
Jeniffer Yara
Como não gostar? Tem todo o mistério de que tipo de monstro está dentro de Adrian, e Catherine? Nunca iria imaginar que ela é cega antes de chegar na terceira parte! O que será que quis dizer quando escreveu "sabia que estava perdido" no final? Hm, ele pode muito bem querer fazer alguma coisa má com ela né. Enfim, escreves muito bem,muito bem mesmo Jade, não me lembrava mais desse seu dom com narrativa, faz tempo que li um conto em seu blog, acho que faz anos né. rs
Continua sim o/
Beijos ><
Amanda Pelúcio
Eu ameeeeeeeei! Quero mais *-* Hey, quando postar a segunda parte me avisa, ta? Amei, amei, ameeeei! ♥ Quisera eu ter metade do teu vocabulário. Lindo! Voce é mt mt melhor do que muitas autoras famosas que tem por ai viu. PARABENS!!!
http://www.mulherzinhamodeon.com
Sabrina Gomes
Que lindo, misterioso e faz o leitor ficar vidrado em cada detalhe ! Parabéns pelo seu blog e pelo seu talento, amei aqui e estou seguindo, se quiser me visitar , adoraria, http://www.spiderwebs.tk